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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Abordagem Metodológica

Para pensar filosoficamente é preciso decidir um ponto de vista e analisar algum fenômeno ou objeto a partir dele e só por ele. Isso não implica sua visão acerca de algo, mas a visão de algum filósofo junto da corrente de pensamento dele; você pensa pensando o pensamento dele. Claro que há liberdade para você fazer o que quiser, a exemplo disso pode apontar falhas filosóficas, inadequações a situações analisadas, referência a um filósofo anterior, esclarecimento do crédito e descrédito da pós-modernidade em relação a esse pensamento. Mas saiba:

Dificilmente você conseguirá manter na corda bamba da análise. Ouse caso tenha propriedade (e muitor rigor) para falar.

À luz da filosofia, você pode ver posicionamentos de amigos, analisar comportamentos estranhos à realidade que lhe cerca, enfrentar complexas situações de tabus na sociedade, tecer considerações consistentes sobre algum problema político. Mas... e a finalidade prática? Olha, o seu discurso só será proveitoso e útil se modificar/alterar/transformar a atitude de alguém para que esse alguém propague sua ideia e chegue até umas pessoa que tenha poder político de exercer alguma modificação na sociedade. Lógico, você pode moldar o pensamento da comunidade do bairro e promover uma revolução, passeata, movimento, carreata; isso é fantástico, não é mesmo. Será quanto mais você não sentir a necessidade de ser reconhecido pelo seu pensamento; livre-se da necessidade da recompensa.

A "recompensa maior" encontra-se nos motivos metapessoais. Um professor que depende do resultado efetivo do aluno pode ser vítima da frustração/decepção consequente de uma ilusão, uma projeção idealizada de um futuro glorioso. Outro, ivestindo na esperança de tentar, desvinculado da indiferença, reconhecendo-se o outro e ao mesmo tempo ele mesmo, esse "pega, senti e passa adiante".

Pensar, a meu ver, está a tornar-se um modo rigoroso, social, político, prático, reflexivo e sensível/delicado*. Pensar é lapidar até encontrar o brilho original de todas as causas e efeitos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

(Tempo de Delicadeza)

*Um texto de Afonso Romano de Sant'Anna

Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras. Sei que viver está cada vez mais dificultoso.

Mas talvez por isto mesmo ou talvez devido a esse setembro azulzinho, a essa primavera que vem aí, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nos cruzamentos da televisão ou do cinema com a própria vida.

Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: ‘‘Sejamos pornográficos, docemente pornográficos’’. Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em ‘‘grosseiramente pornográficos’’. Por isto, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinicius de Moraes ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:

Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados. Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos. Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.

Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinicius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente. Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente Elegia ao primeiro amigo, nos dizia:



"Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente

E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma

Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.

Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.

Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.

Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim

Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível

Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher

Mas com singular delicadeza. Não sou bom

Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado

Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida

Como um lobo".’’

Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados. Lembram-se de Rimbaud? Ele dizia: ‘‘Por delicadeza, eu perdi minha vida’’.

Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza.

Confesso que, buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de ser cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.

A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.

Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas-mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.

Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST — com sua foice e fúria — dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres desse país há 500 anos?

Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: ‘‘Morrer se preciso for, matar nunca’’.

Sei que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo, não nos deixam ser delicados.

— E eu não sei?

Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E se necessário for, cruelmente delicados.